sábado, 7 de abril de 2007

Saldo Negativo

A multidão se aglomera frente ao estabelecimento. A noite caía e esfriava o cadáver ainda úmido, vítima daquela tarde. Os assaltantes não tiveram um pingo de consciência de que levariam a vida dele atirando ou não. Carregaram seu suor e sangue, seu tempo com a esposa e filhos, seus sonhos e deveres, tudo em uma sacola velha de lona. Atiraram naquela tarde e um pouco do coração da vila inteira.

...

Ao chegar ao balcão da farmácia, me escorei e esperei que ele terminasse de escrever em um papel. Ele ergueu o pescoço mais do que necessário para um homem comum. Entretanto, sua cabeça mal saía acima do balcão. Esse era o Baixinho.

Ele me atendeu meio desconfiado, me olhando de cima abaixo. Sempre me encarando por sobre o óculos fundo de garrafa. Por fim, me entregou o troco e largou:

- Tu não é o filho do Gelson?

- Isso mesmo... - E o assunto continuou.

Assim virei cliente dele. Ou será que não. Acho que isso foi bem antes.

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Assim como todo cidadão que nasceu e se criou nos bairros Fátima, Marechal Rondon e Nova Cachoeirinha, um dia precisou de injeções e conheceu o Baixinho, lá estava eu. Tremia da cabeça aos pés, segurado pelo meu pai. A ponto de voar daquela farmácia, quase criando asas.

- Não vai doer nada, é bem rapidinho – ele tentava me acalmar.

- Ahhhhh, nãããão pai... eu não quero injeçaãããããããão.... ahhhhhhhhh!

- Nossa, mas que fiasco, pronto. Já deu. Nem doeu.

Sequei as lágrimas e saí injuriado. Ele tinha razão, não havia doído nada e eu havia feito um fiasco feminino sem motivo algum. Depois, com o meu pai na rua, desmaiei sem motivos. Eu havia ficado tão nervoso que perdi os sentidos ao me acalmar. Acordei em casa.

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Sobre a sua moto, ele percorria 4 bairros quase todo dia. Era um curativo na dona Diora, no meio da Nova Cachoeirinha. Ela havia estado no hospital durante quase um mês devido a um mioma, e agora se tratava em casa, com curativos uma vez por dia. Seu agradecimento era o seu pagamento. Outro dia teve que dar 10 injeções no filho do seu Ananias, por conta de uma infecção. Era todo dia a mesma romaria. A vila inteira era sua casa, seus filhos eram os filhos dos outros. Ele era o enfermeiro sem diploma de muita gente. De alguns, o médico sem faculdade.

Ele sabia do seu papel na sociedade. Ele tinha suas convicções e sabia que cada um esperava dele um pouco de ajuda, um pouco de compreensão e pagava com muito carinho com sua família e filhos.

...

A moto parou na frente da farmácia, ele ouviu o barulho e saiu de trás das prateleiras. Um cara já se encontrava no meio da loja e o outro continuou sentado na moto ligada. Sem tirar o capacete, o rapaz levou a mão as costas enquanto ele perguntava:

- O que era pra ti?

- Abre o caixa, vamo logo, é um assalto.

Acostumado a rotina de assaltos, e um tanto indignado, se recusa a correr. Começa a falar do dinheiro do aluguel e da faculdade dos filhos. Por dentro do capacete, reconhece traços do motoqueiro e sua voz que o denunciava.

- Tu não é o filho do....

- Não sou ninguém, me dá esse dinheiro logo.

- Mas eu te conheço...

- Ah, tu me conhece? Tu me conhece? - um disparo nervoso e um peito perfurado.

Caído pelo impacto, ele se arrasta em direção a um filho da comunidade que ele cuidou como seu. Ao se agarrar no pé deste, que enchia a sacola de lona com o dinheiro do caixa, o motoqueiro se vira e chuta. Mais dois disparos e a disparada sobre a moto.

Fábula e tragédia. Morre abraçado a um pé de sapato do agressor.

Um comentário:

Neusa Nunes e Nunes disse...

Realmente o Baixinho era o amigo mais próximo de muitos moradores do Bairro Fátima, incluindo da nossa família. Era um comerciante honesto, prestativo, paciente e que trabalhava com o antigo sistema de caderneta (anotava dívidas). Conquistou muitos clientes que viraram amigos. Fico feliz por perceber a tua sensibilidade e consideração filho ao nosso GRANDE amigo Baixinho, também conhecido como o Bastião da farmácia.